'...NO TANGO OS PÉS TÊM TANTA EXPRESSÃO QUANTO OS OLHOS.'


Ela e o tango

Ela estava mais uma vez sentada em frente ao espelho de sua penteadeira, tentando ver a melhor forma de prender o cabelo que se recusava a ficar jeitoso como ela queria. Fez a mesma maquiagem de sempre, um batom vinho nos lábios e um delineador bem passado nos olhos davam-lhe a impressão de que era outra mulher. Talvez uma mulher melhor. Talvez mais mulher. E o perfume era adocicado, apenas sugerindo uma aproximação. Seu jeito de ser era doce, porém com necessidades fortes, cores vibrantes. Por isso colocou aquele vestido vermelho, que apesar da cor, era discreto. Queria aparecer sem fazer alarde. Calçou seus melhores sapatos argentinos, pretos de camurça, que lhe contornavam os pés, assim como o delineador fazia com seus olhos. Isso lhe fazia lembrar que no tango os pés têm tanta expressão quanto os olhos. Certa vez, em Buenos Aires, uma antiga professora lhe havia chamado a atenção numa milonga para o fato de como as pessoas que ali estavam exibiam seus pés com certo orgulho. Alguns com tamanha arrogância que pareciam cravados num pedestal. Seus pés não eram tão bonitos, mas quando entravam no salto agulha calibre nove e meio, não havia beleza maior para ela. Sabia que se comunicava pelos pés. E ali, na milonga, seus pés eram íntimos do chão. Os dois se acariciavam mutuamente, um sentindo a pulsação do outro, ditando-lhe o verdadeiro ritmo daquele baile. Era apenas mais um baile relativamente cheio, com a mesma energia que ela adivinhava já em anos de contato com aquelas pessoas. As mesmas músicas que lhe fizeram aprender os primeiros passos, quando ainda pensava que aquela dança era muito difícil com seus hieróglifos gestuais, coisa para filósofos do corpo e da alma. Hoje entendia. Pelo menos um pouco mais. Cada vez que saía ao salão para dançar com alguém, tentava perceber ali um momento único, com um homem único, como se tudo se entrelaçasse e tudo fizesse parte de uma única linguagem. Era ela a filósofa agora. Deixava seu braço esquerdo enlaçar com certo abandono o ombro e o pescoço daquele que seria seu grande amigo naquela hora. E oferecia seu abraço como quem pede “Seja bom comigo. Eu estou aqui.”, ou se ele se mostrava demasiadamente preocupado em acertar – essa coisa que os filósofos não acreditam que exista – ela suspirava com o corpo e como quem diz “Ei, não se leve tão a sério, vamos brincar somente”.
Sorrir com o corpo, ela sabia, não era tarefa das mais fáceis, principalmente se nos desesperamos em não errar, como se no tango isso fosse possível, assim como numa conversa não é possível errarmos, afinal estamos apenas trocando idéias. Seu corpo não era fácil e precisava da confiança para funcionar direito. Ela parava em determinado momento e queria apenas contemplar. O salão depois de uma certa hora parece que se comunica melhor. O vinho já começa a fazer efeito e vai desacorrentando músculos e articulações. Línguas também, pois todos falam mais, riem mais. Ao final, na última tanda seu coração está sereno como numa meditação e seu corpo aceita tudo praticamente. O ritual termina. Ela se despede de todos, sentindo que aquele foi mais um baile na sua vida, nada além disso.Photobucket É quando chega em casa e retira a maquiagem, que a música volta aos seus ouvidos e junto com ela, as lembranças da noite e essas lembranças puxam outras lembranças boas e más, todas que serviram para forjá-la como ela é agora. Talvez uma pessoa melhor. Talvez mais mulher.

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